Em tempos de isolamento social, quem sabe brincar nunca está só!

Estamos vivendo uma situação nunca vivida por nossa geração, a pandemia do Coronavírus e a necessidade do isolamento social escancarou muitas situações e uma delas foi o quanto o brincar realmente está sendo BRINCAR!

Famílias inteiras estão em casa, algumas tem o tempo todo livre, outras estão vivendo, também pela primeira vez, o Home Office. Pais e mães pressionados pelo trabalho, pelos afazeres domésticos, pela necessidade de manterem a saúde física e mental, responsáveis principalmente, por manterem seus filhos saudáveis e a salvo.

Mas, além de manterem as crianças saudáveis precisam mantê-las “ocupadas”, aprendendo algo que a escola enviou, realizando atividades indicadas pelos terapeutas, ajudando nos afazeres domésticos e brincando!
Podemos falar minuciosamente de todas essas funções e da importância de todas elas, mas se não falarmos do brincar primeiro nenhuma outra fará sentido!

Por que estimular o brincar?

Brincar é um processo contínuo de descobertas e afinal, quando aprendemos, desde empilhar blocos até entender e saber usar fórmula de bhaskara, significa que descobrimos algo que antes não sabíamos e então nós acionamos um padrão de sinais elétricos ao longo dos nossos neurônios e isso, com o tempo, ativa as células gliais para mielinizar os axônios aumentando a velocidade e a força dos sinais elétricos. A mielinização faz parte do processo de desenvolvimento cerebral, sendo que a mielina é uma camada lipoprotéica que envolve e protege a condução nervosa dos axônios dos neurônios, tornando essa condução mais rápida e eficaz. Então, a grosso modo, quanto mais descobrimos (aprendemos coisas novas) mais eficazes são as conexões cerebrais!

Você já deve ter ouvido falar sobre as sinapses, que são ligações especializadas entre dois neurônios, elas iniciam quando os neurônios começam a migrar para suas localizações e a partir da 18ª semana de gestação acontecem em regiões específicas do cérebro. As pesquisas indicam que nos adultos elas existem, estão interagindo entre si, mas são formadas em pequenas quantidades, pois a maior parte delas se se forma até os 6 anos de idade.

E, para que esses processos neurológicos aconteçam de forma consistente precisamos de um outro processo: a Motivação!
Ivan Izquierdo, neurocientista argentino, radicado no Brasil, pesquisador da memória, afirma que: “Da mesma forma que sem fome não aprendemos a comer e sem sede não aprendemos a beber água, sem motivação não conseguimos aprender”.

Quando somos afetados de forma positiva a região no cérebro responsável pelos centros de prazer produz uma substância chamada dopamina que gera bem-estar, reforça o comportamento que ativou esse centro de prazer e faz com que voltemos nossa atenção para o que nos afetou.

No livro “Motivação para ensinar e aprender: Teoria e prática”, a autora Suzana Schwartz, cita que: “White (1959) introduziu o conceito de motivação intrínseca para explicar/compreender como os seres humanos, às vezes, executam ações em que não almejam conseguir algo externo, mas sim o seu próprio desenvolvimento como pessoas e o desenvolvimento de suas capacidades, cuja própria realização é em si mesma estimulante.

Quando estudamos a teoria e a abordagem da Integração Sensorial (saiba mais sobre clicando aqui) desenvolvida pela terapeuta ocupacional Anna Jean Ayres, constatamos que a motivação intrínseca é um dos pontos a serem considerados para que a Práxis (capacidade de utilizar o corpo para realizar tarefas como brincar, comer,etc…) seja efetivamente construída.

A Terapia Ocupacional utiliza de forma consistente o brincar em sua prática clínica, utilizando a motivação intrínseca como combustível para o desenvolvimento de crianças que apresentam dificuldades e para orientação familiar, escolar e de toda a equipe multidisciplinar, que deve estar engajada nesse processo de integração do brincar.

Mas você deve estar se perguntando o que tudo isso tem a ver com o problema do isolamento social devido ao Coronavírus.

A grande maioria das crianças tem uma infinidade de compromissos no seu dia-a-dia, escola, terapias, natação, dança, inglês, futebol, aulas de reforço, ginástica, teatro, circo, entre muitas outras e a família se vira em mil para levar a criançada para todos esses compromissos. E quando estão em casa há mais um monte de obrigações: lavar, passar, cozinhar, limpar, dar comida, dar banho, fazer tarefa. E os adultos da família, além de tudo isso, tem o trabalho fora de casa. E aí eu te pergunto: Onde cabe o brincar dentro dessa rotina?
E, nessa nova rotina, totalmente diferente agora por causa do isolamento, onde cabe o brincar?

No início do texto falei sobre como essa situação que estamos vivendo escancarou o Brincar e isso é real. Temos visto mães, pais e crianças perdidos. Será que eles realmente estão brincando ou apenas estão dando demandas para que as crianças cumpram.

brincar

Uma situação real vivida pela mamãe Leidiany e por seu filho Lucas (que estão nas fotos) evidenciou isso que estamos falando.
A Leidiany preparou uma atividade para brincar com o Lucas para que ele aprendesse os números, ele devia preencher os números com diversos materiais colando-os com cola colorida. A “atividade” começou bem, Lucas engajado cheio de motivação e mamãe também, mas logo a idéia dele sobre o que fazer com tudo aquilo mudou completamente. E aí, o que fazer?

É aqui que entra o respeito pela motivação intrínseca e nos mostra que a Leidiany tomou a decisão certa ao entrar na brincadeira do Lucas e deixar que ele conduzisse. O que aconteceu é que ele decidiu misturar as cores das colas coloridas e a mamãe incentivou fazendo isso juntos e então ele descobriu que misturando vermelho com amarelo ele fez o laranja e sabe o que aconteceu? Produção de dopamina! A brincadeira foi extremamente reforçadora!

Logo depois Lucas percebeu que podia pegar tudo aquilo e brincar de fazer comidinha e a mamãe fez o que? Fez comidinha com ele, fez de conta que comeu a comida que ele fez, falou que estava uma delícia! E qual o resultado disso? Mais produção de dopamina!

E será que além de se divertir Lucas também aprendeu?
Pode ser que ele não tenha aprendido os números, mas aprendeu uma infinidade de coisas que quem sabe não teria aprendido se ficasse ali apenas colando feijões em um número impresso em um papel. Temos aqui mais sinapses e mielinização acontecendo.

Então podemos considerar aqui que tivemos uma tríade: Motivação Intrínseca, Reforço positivo e uma mãe que não se limitou apenas àquilo que achou que seria uma brincadeira, mas sim deu espaço para que a criança fosse a protagonista e, principalmente, brincou junto.

E quando falo que ela brincou junto não quer dizer que ela ficou perto, que ela deixou ele fazer o que quisesse ou que apenas ajudou ele, quer dizer que ela tomou seu papel no jogo. Ela foi uma brincante com ele!

Nós adultos temos muita dificuldade em “descer” ao nível da criança e aí está a maior dificuldade que vemos entre pais e filhos, por isso o que quero dizer é que para que a criança aprenda precisamos nos mostrar parceiros de jogo e não há como fazer isso sem realmente jogar. Isso quer dizer que naqueles momentos em que estiver brincando com uma criança que você esteja realmente brincando também, seja uma criança, isso com certeza vai tornar ambos adultos mais felizes, cheios de dopamina e com muitas conexões cerebrais acontecendo.

Então, não se prenda àquilo que planejou, deixe a brincadeira fluir, pois, certamente, aquilo que você planejou poderá ser refeito depois e quem sabe com mais motivação intrínseca da criança, pois aconteceu algo incrível: você ganhou a confiança dela e isso não tem preço!

E tem uma outra coisa que é super importante, não espere somente aquele momento ideal para parar e brincar, aproveite qualquer oportunidade para isso, seja colocando uma peça de roupa na cabeça dizendo ser um capacete especial para levar as outras peças de roupa a salvo para os planetas delas enquanto guarda as roupas nas gavetas, seja dançando com a vassoura enquanto varre a casa ou cantarolando uma música inventada com uma voz engraçada enquanto cozinha… e esse é um assunto para um próximo texto: Brincar com brinquedo?

Joyce Marques
Terapeuta Ocupacional
CREFITO13/11012-T.O.

Referências:
SCHWARTZ, Suzana. Motivação para ensinar e aprender: teoria e prática. Petrópolis, RJ: Ed. Vozes, 2019.
SALLA, Fernanda. Neurociência: como ela ajuda a entender a aprendizagem.2012. Disponível em: https://novaescola.org.br/conteudo/217/neurociencia-aprendizagem. Acesso em 30 mar.2020


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